A Lagarta que Chorava Dia e Noite - A História Completa
É injusto pensar que só a rosa sofre o drama de ser; todos os seres vivos – ou pelo menos aqueles que têm consciência de que existem – passam pelo mesmo. “É injusto pensar”... interessante como tudo o que nos fere nos parece injusto. E a palavra injustiça nos conduz a um caminho que pode se tornar tortuoso, quando nos remete aos conceitos de julgamento e balança. Que pesos e medidas usamos em nossa balança?
Sempre é relativo: se estamos julgando a nós mesmos, preferimos os pesos mais pesados que possuímos (seriam estes nossas palavras de maior credibilidade?), para então nos sentirmos leves, absolvidos. Em contrapartida, se são aos outros que julgamos, sempre utilizamos nossos mais leves pesos (seriam estes nossas palavras reticentes?)... E se a balança do outro nos pesa? Ficamos em tão mau posição...e a isto denominamos “injustiça”.
Este é, filosoficamente falando, o discurso básico de uma lagartinha esverdeada e pedante do jardim:
- Injusto! Injusto! – ela vive se remoendo, e vai se arrastando...
Na realidade, toda a lagarta que nasce no mundo desconhece que um dia se tornará uma bela e sábia borboleta. E isso torna tudo mais difícil: elas se tornam tão amargas e ressentidas que maioria morre antes da metamorfose (daí a crescente dificuldade de se encontrar uma borboletinha...). Além disso, elas reclamam tanto, tanto, que vão perdendo a capacidade de ouvir e, em casos crônicos, elas ficam inteiramente surdas.
O outro problema grave das lagartas é que elas tomam suas decisões baseadas apenas em suas necessidades e objetivos; e que o resto do mundo se conforme! E foi exatamente neste contexto que a referida lagarta do meu referido jardim decidiu, um dia, morar nas minhas folhinhas: ela simplesmente se aproximou de mim, olhando tudo ao redor e fazendo cálculos, deitou na folha e disse consigo mesma:
- É, aqui está bom, muito bom.
Eu sabia que não adiantava discutir; porém, tentei ao menos estabelecer um acordo, algo como uma política de boa vizinhança, embora ela fosse muito mais que uma vizinha, agora: estava dividindo o meu espaço comigo:
- Errr...dona lagarta, já que a senhora resolveu morar aqui nas minhas folhas, eu gostaria de dizer...
- Suas folhas? Ora, ora! – ela não me deixou nem continuar. – Que injustiça! Você ocupa este espaço todo no mundo, como fosse uma rainha, e ainda quer argumentar? – ela falava com um tom austero, e a cada palavra ficava mais verde e inchada.
Eu respirei fundo, muito fundo, como que imaginando que a paciência e calma estivessem misturados ao ar e falei:
- Com todo respeito, dona lagarta, eu tenho certos direitos; não só eu, é claro, mas todos os seres vivos e...
- Pois o meu direito é o de morar onde quiser, e o seu dever é respeitar o meu direito de ter direitos! Argh, Você é a rosa MAIS INJUSTA QUE CONHEÇO! – ela por fim gritou. E então deu-me às costas e adormeceu. E eu fiquei ali (claro) pasmada, sentindo-me meio ultrajada. Mas por fim concluí que teria que suportar a lagarta para um dia ter uma amiga borboleta. Isso paga a pena.
Porém, o tempo tem o poder de destruir muitas de nossas convicções e promessas. Meu dia-a-dia tornou-se meio insuportável; e eu não podia negar: era culpa daquela lagartinha! Às vezes me perguntava como aquela pequenina conseguia guardar em si tamanho amargor, e por tanto tempo!
Contudo, logo meu coração me alertava que todo ser possui a sua dor (eu mesma não tinha a minha?) e eu realmente não estava sendo justa em achá-la a pior de todas as criaturinhas do jardim (será que a lagarta tinha mesmo razão? ). Em meu íntimo, no entanto, havia um profundo desejo de fazer algo por ela; eu sabia que ela sofria. Por mais que disfarçasse, eu via as duas pequenas lágrimas que lhe caíam, quando o dia adormecia no fecundo silêncio do jardim. Afinal, ela estava bem ali, em minhas folhas e por mais que me esforçasse, não conseguia ignorá-la; penso mesmo que não queria fazê-lo. E o que mais me entristecia era o fato de, estando eu tão perto, estar ao mesmo tempo tão longe: ela não me deixava aproximar. Mas eu não desistia.
E nesta situação amanheceu mais um dia: frio, chuvoso, triste. A lagarta, porém, conseguia superá-lo! Estava completamente cinza! E como estava inchada! Mas resolvi enfrentá-la, assim mesmo, amedrontadora como estava:
- Bom dia, dona lagarta! Bom dia! - disse com entusiasmo.
- O que este dia tem ou terá de bom? - ela fez uma careta e encolheu-se no cantinho da minha folha.
Detive-me em observá-la melhor: ela estava mesmo mais inchada do que nunca! E eu já tinha observado anteriormente que ela sempre ficava mais inchada durante o dia. Não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas se ela continuasse daquela meneira, iria simplesmente explodir! Não, eu não podia desistir!
- Dona lagarta, a senhora precisa crer que tudo vai melhorar! Apesar da chuva e do frio, o dia tem tudo para ser bom, pois estamos vivas e isso já é o suficiente para tudo se fazer novo outra vez! - eu por fim repliquei, reunindo toda a esperança que tenho de dias melhores.
Eu não podia acreditar! Ela estava calada, olhando-me, com uma expressão indecifrável. Pela primeira vez, eu cria que a lagarta estava refletindo em palavras que não eram dela mesma. E, de cinza, ela foi ficando verde, verde, VERDE e não mais pôde se conter:
- Arrr!!! As rosas são todas iguais! - ela gritou, exasperada. - Sempre com grande insensatez querem persuardir a todos de idéias nas quais nem elas mesmas acreditam! - ela estava realmente furiosa, bufando.
Não pude suportar aquilo! Grande decepção! Nada do que eu dissera surtira nenhum efeito positivo nela. Naquele momento, compreendi, muito amargamente, que não se deve tentar mudar a natureza ou a essência dos seres ou das coisas.
Ela não parava mais de me caluniar:
- O que você entende sobre a vida? Você não passa de uma flor inútil que está fadada a morrer seca, o que prova que nunca teve conteúdo e...
Desta vez, fui eu que não a permití continua: não haveria limites para uma revolta tão infundada? Sem titubear, empurrei uma folha minha dentro de sua boca, de modo que ela ficasse impedida de falar. Como ela ficou empertigada!
Então, forcei-a a olhar para mim; agora sim, ela teria que me ouvir!
Porém, ao olhar bem dentro dos olhos dela, fui eu quem ficou impedida de falar: como não percebera antes? Ali estava a verdade, como eu pude ser tão estúpida?
Pois, bem lá no fundo dos olhos da lagarta, havia alguém; alguém arrogante e desprezível: o besourão.
Naquele momento desvendei todo o mistério: o amargor da lagarta era amar um besouro.
Realmente não precisei dizer nada. Lentamente fui retirando minha folhinha de sua boca (fiquei meio envergonhada de minha atitude, passado o calor do momento).
A lagarta não gritou. Não falou. Não agrediu. Simplesmente chorou. Mas não foram duas pequenas lágrimas, daquelas que eu percebia todos os dias, na noite do jardim. Era uma torrente de lágrimas, que a mim pareciam brotar do mais íntimo do seu ser.
E eu não sabia o que fazer, vendo-a cada vez mais fininha, e concluí que todo aquele inchasso era fruto de um choro ao avesso: ela chorava pra dentro; e apenas quando não havia mais espaço dentro de si e testemunhas é que elase permitia aquelas duas discretas lágrimas, que comunicavam ao mundo - mesmo que este não percebesse - a sua dor.
Sim, amar é uma dor. Quanto mais quando se ama um besourão!
Um besourão é muito mais que cascudo: é impenetrável. Orgulhoso, não se permite amar, pois abomina qualquer tipo de doação. E, se deseja alguém ao seu lado, este alguém deve ser pomposo, belo e viajado e, de preferência, sem muitos sentimentos. Tudo o que uma lagarta não pode ser...
Por isso ela achava a vida, o mundo tão injusto!
Eu pensei em dizê-la que , em algum momento, tudo mudaria; que sua forma de existência não era eterna, mas apenas um estado.
Mas será essa revelação uma real ajuda? Teria eu o direito de interromper aquele processo, ainda que doloroso? Não será a dor o primeiro trecho do caminho da sabedoria?
Eu não era uma borboleta, como poderia saber com absoluta certeza?
Perdida em minhas divagações, nem percebi que a lagartinha tinha adormecido (outra vez...), tão magrinha; um sono diferente, sofrido, mas parecendo, ao mesmo tempo, aliviado.
Resolvi não perturbá-la mais. Bastaria, pra mim, que ela sentisse que eu lhe era solidária, mesmo que só em seus sonhos de lagarta adormecida pudesse sabê-lo. Eu estaria ali, se precisasse.
Mais uma vez olhei para aquela lagartinha e pus-me a pensar em todas as lagartas do mundo: será que eram como eram por que alimentavam um amor difícil e massacrante?
Então olhei o jardim até onde minha visão alcançava e meu questionamento tomou grande vulto: seria a dor que todos os seres sentem o legado de um malfadado amor?
Sempre é relativo: se estamos julgando a nós mesmos, preferimos os pesos mais pesados que possuímos (seriam estes nossas palavras de maior credibilidade?), para então nos sentirmos leves, absolvidos. Em contrapartida, se são aos outros que julgamos, sempre utilizamos nossos mais leves pesos (seriam estes nossas palavras reticentes?)... E se a balança do outro nos pesa? Ficamos em tão mau posição...e a isto denominamos “injustiça”.
Este é, filosoficamente falando, o discurso básico de uma lagartinha esverdeada e pedante do jardim:
- Injusto! Injusto! – ela vive se remoendo, e vai se arrastando...
Na realidade, toda a lagarta que nasce no mundo desconhece que um dia se tornará uma bela e sábia borboleta. E isso torna tudo mais difícil: elas se tornam tão amargas e ressentidas que maioria morre antes da metamorfose (daí a crescente dificuldade de se encontrar uma borboletinha...). Além disso, elas reclamam tanto, tanto, que vão perdendo a capacidade de ouvir e, em casos crônicos, elas ficam inteiramente surdas.
O outro problema grave das lagartas é que elas tomam suas decisões baseadas apenas em suas necessidades e objetivos; e que o resto do mundo se conforme! E foi exatamente neste contexto que a referida lagarta do meu referido jardim decidiu, um dia, morar nas minhas folhinhas: ela simplesmente se aproximou de mim, olhando tudo ao redor e fazendo cálculos, deitou na folha e disse consigo mesma:
- É, aqui está bom, muito bom.
Eu sabia que não adiantava discutir; porém, tentei ao menos estabelecer um acordo, algo como uma política de boa vizinhança, embora ela fosse muito mais que uma vizinha, agora: estava dividindo o meu espaço comigo:
- Errr...dona lagarta, já que a senhora resolveu morar aqui nas minhas folhas, eu gostaria de dizer...
- Suas folhas? Ora, ora! – ela não me deixou nem continuar. – Que injustiça! Você ocupa este espaço todo no mundo, como fosse uma rainha, e ainda quer argumentar? – ela falava com um tom austero, e a cada palavra ficava mais verde e inchada.
Eu respirei fundo, muito fundo, como que imaginando que a paciência e calma estivessem misturados ao ar e falei:
- Com todo respeito, dona lagarta, eu tenho certos direitos; não só eu, é claro, mas todos os seres vivos e...
- Pois o meu direito é o de morar onde quiser, e o seu dever é respeitar o meu direito de ter direitos! Argh, Você é a rosa MAIS INJUSTA QUE CONHEÇO! – ela por fim gritou. E então deu-me às costas e adormeceu. E eu fiquei ali (claro) pasmada, sentindo-me meio ultrajada. Mas por fim concluí que teria que suportar a lagarta para um dia ter uma amiga borboleta. Isso paga a pena.
Porém, o tempo tem o poder de destruir muitas de nossas convicções e promessas. Meu dia-a-dia tornou-se meio insuportável; e eu não podia negar: era culpa daquela lagartinha! Às vezes me perguntava como aquela pequenina conseguia guardar em si tamanho amargor, e por tanto tempo!
Contudo, logo meu coração me alertava que todo ser possui a sua dor (eu mesma não tinha a minha?) e eu realmente não estava sendo justa em achá-la a pior de todas as criaturinhas do jardim (será que a lagarta tinha mesmo razão? ). Em meu íntimo, no entanto, havia um profundo desejo de fazer algo por ela; eu sabia que ela sofria. Por mais que disfarçasse, eu via as duas pequenas lágrimas que lhe caíam, quando o dia adormecia no fecundo silêncio do jardim. Afinal, ela estava bem ali, em minhas folhas e por mais que me esforçasse, não conseguia ignorá-la; penso mesmo que não queria fazê-lo. E o que mais me entristecia era o fato de, estando eu tão perto, estar ao mesmo tempo tão longe: ela não me deixava aproximar. Mas eu não desistia.
E nesta situação amanheceu mais um dia: frio, chuvoso, triste. A lagarta, porém, conseguia superá-lo! Estava completamente cinza! E como estava inchada! Mas resolvi enfrentá-la, assim mesmo, amedrontadora como estava:
- Bom dia, dona lagarta! Bom dia! - disse com entusiasmo.
- O que este dia tem ou terá de bom? - ela fez uma careta e encolheu-se no cantinho da minha folha.
Detive-me em observá-la melhor: ela estava mesmo mais inchada do que nunca! E eu já tinha observado anteriormente que ela sempre ficava mais inchada durante o dia. Não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas se ela continuasse daquela meneira, iria simplesmente explodir! Não, eu não podia desistir!
- Dona lagarta, a senhora precisa crer que tudo vai melhorar! Apesar da chuva e do frio, o dia tem tudo para ser bom, pois estamos vivas e isso já é o suficiente para tudo se fazer novo outra vez! - eu por fim repliquei, reunindo toda a esperança que tenho de dias melhores.
Eu não podia acreditar! Ela estava calada, olhando-me, com uma expressão indecifrável. Pela primeira vez, eu cria que a lagarta estava refletindo em palavras que não eram dela mesma. E, de cinza, ela foi ficando verde, verde, VERDE e não mais pôde se conter:
- Arrr!!! As rosas são todas iguais! - ela gritou, exasperada. - Sempre com grande insensatez querem persuardir a todos de idéias nas quais nem elas mesmas acreditam! - ela estava realmente furiosa, bufando.
Não pude suportar aquilo! Grande decepção! Nada do que eu dissera surtira nenhum efeito positivo nela. Naquele momento, compreendi, muito amargamente, que não se deve tentar mudar a natureza ou a essência dos seres ou das coisas.
Ela não parava mais de me caluniar:
- O que você entende sobre a vida? Você não passa de uma flor inútil que está fadada a morrer seca, o que prova que nunca teve conteúdo e...
Desta vez, fui eu que não a permití continua: não haveria limites para uma revolta tão infundada? Sem titubear, empurrei uma folha minha dentro de sua boca, de modo que ela ficasse impedida de falar. Como ela ficou empertigada!
Então, forcei-a a olhar para mim; agora sim, ela teria que me ouvir!
Porém, ao olhar bem dentro dos olhos dela, fui eu quem ficou impedida de falar: como não percebera antes? Ali estava a verdade, como eu pude ser tão estúpida?
Pois, bem lá no fundo dos olhos da lagarta, havia alguém; alguém arrogante e desprezível: o besourão.
Naquele momento desvendei todo o mistério: o amargor da lagarta era amar um besouro.
Realmente não precisei dizer nada. Lentamente fui retirando minha folhinha de sua boca (fiquei meio envergonhada de minha atitude, passado o calor do momento).
A lagarta não gritou. Não falou. Não agrediu. Simplesmente chorou. Mas não foram duas pequenas lágrimas, daquelas que eu percebia todos os dias, na noite do jardim. Era uma torrente de lágrimas, que a mim pareciam brotar do mais íntimo do seu ser.
E eu não sabia o que fazer, vendo-a cada vez mais fininha, e concluí que todo aquele inchasso era fruto de um choro ao avesso: ela chorava pra dentro; e apenas quando não havia mais espaço dentro de si e testemunhas é que elase permitia aquelas duas discretas lágrimas, que comunicavam ao mundo - mesmo que este não percebesse - a sua dor.
Sim, amar é uma dor. Quanto mais quando se ama um besourão!
Um besourão é muito mais que cascudo: é impenetrável. Orgulhoso, não se permite amar, pois abomina qualquer tipo de doação. E, se deseja alguém ao seu lado, este alguém deve ser pomposo, belo e viajado e, de preferência, sem muitos sentimentos. Tudo o que uma lagarta não pode ser...
Por isso ela achava a vida, o mundo tão injusto!
Eu pensei em dizê-la que , em algum momento, tudo mudaria; que sua forma de existência não era eterna, mas apenas um estado.
Mas será essa revelação uma real ajuda? Teria eu o direito de interromper aquele processo, ainda que doloroso? Não será a dor o primeiro trecho do caminho da sabedoria?
Eu não era uma borboleta, como poderia saber com absoluta certeza?
Perdida em minhas divagações, nem percebi que a lagartinha tinha adormecido (outra vez...), tão magrinha; um sono diferente, sofrido, mas parecendo, ao mesmo tempo, aliviado.
Resolvi não perturbá-la mais. Bastaria, pra mim, que ela sentisse que eu lhe era solidária, mesmo que só em seus sonhos de lagarta adormecida pudesse sabê-lo. Eu estaria ali, se precisasse.
Mais uma vez olhei para aquela lagartinha e pus-me a pensar em todas as lagartas do mundo: será que eram como eram por que alimentavam um amor difícil e massacrante?
Então olhei o jardim até onde minha visão alcançava e meu questionamento tomou grande vulto: seria a dor que todos os seres sentem o legado de um malfadado amor?
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